Você já ouviu falar de Ronald Biggs? Se conhecer a história, sugiro pular para o próximo parágrafo. Se não sabe quem é, dou um resumo. Biggs foi um assaltante inglês que conseguiu fugir da cadeia após ser preso pelo assalto a um trem postal em Buckinghamshire , em 1963, no sul da Inglaterra. Ele e mais 15 pessoas roubaram nada menos do que 2,6 milhões de libras, o que, em dinheiro de hoje, seria o equivalente a uns 16 milhões de reais. Fugiu para Paris, depois foi para a Austrália e acabou vindo parar no Brasil, onde virou celebridade. Isso em plenos anos 1970, sob o regime militar.
Os motivos para não ter sido mandado de volta para a Inglaterra foram muitos, entre eles a falta de um acordo de extradição entre os dois países. O Brasil até propôs um acordo, mas a Inglaterra não aceitou por temer que os militares pudessem exigir em troca a extradição de exilados políticos, e ele foi ficando por aqui, onde rapidamente arrumou uma namorada e um filho, que acabou virando integrante do grupo infantil Balão Mágico e gerando renda para Biggs, que, formalmente, não podia trabalhar. A própria contratação do filho foi fruto das boas relações que o ex-assaltante de trem levava quando no Brasil. Até camisetas, xícaras e souvenirs com a cara dele começaram a vender, deixando o bandido cada vez mais famoso.
Trouxe Ronald Biggs na conversa porque o caso dele prova de que a tolerância e idolatria por bandido não é coisa recente. Ainda tinha a questão de ele ser inglês, charmoso, e sabemos nem que brasileiro adora um gringo europeu. Com Cesare Battisti não foi diferente disso. Tal qual Biggs ele foi acolhido por personalidades, construiu excelentes relações e também foi ficando, ficando, até que Temer acabou despachando o sujeito para a Itália, onde ele confessou que realmente era o responsável pelos crimes que a justiça italiana o acusava.
Ao contrário de Biggs, que nunca negou sua participação no assalto, e em 2001 negociou um cachê para se entregar e ficou preso até morrer, Battisti foi à marra, com a esquerda brasileira defendendo sua inocência até o avião pousar na Itália, pois assim que chegou lá ele confessou tudo, a esquerda não falou mais nada, a imprensa nunca mais tocou no assunto e a gente não sabe cobrar nem a coerência dessas pessoas, o que dirá cobrar que se retratem por protegerem um sabido terrorista por tantos anos. E veja que o advogado que o defendeu e jurou sua inocência em defesa oral no STF, não cobrou nada. Só virou ministro do STF depois.
Não é flagrante o contraste? A gente tolera o Biggs, tolera o Battisti e tolera também que advogado de bandido vire ministro do STF. Pior. Sabemos que não se trata só de um. Toleramos corrupto ser tirado da cadeia para virar presidente da república, ministro dono de faculdade livrando a cara de dirigente de futebol ao mesmo tempo que fecha contrato milionário com a entidade dirigida por essa pessoa. Mais. Reportagens e rumores vindos da própria entidade dizem que, atualmente, o ministro manda mais do que o dirigente. Além desse ainda tem outro que é vítima, investigador, inquiridor, polícia e juiz... E segue o baile.
O brasileiro trata bandidos, políticos e autoridades como artistas, celebridade. Veja o caso de Glauber Braga, por exemplo. Uma figura medíocre, uma situação ridícula, recebendo defesas apaixonadas de lideranças de movimentos sociais, sindicalistas e até mesmo de membros da igreja, o que eles são incapazes de fazer quando se trata de gente sabidamente inocente presa pelo 8 de janeiro. Mas, ganha a devida celebrização pela intensa cobertura da imprensa, responsável por consolidar a narrativa que define o que é justo ou injusto, com quem é justo e com quem é injusto, qual juiz é justo e qual é injusto, até que a gente tolere e aceite.
A tolerância que o brasileiro tem com as ilegalidades é totalmente proporcional à tolerância que a justiça tem com os bandidos. Quem não conhece a pergunta muito usada por pseudo-autoridades quando são flagradas em algum tipo de desvio cotidiano que diz “você sabe com quem está falando?”? Tem juiz, coronel, delegado, político, policial, que não gosta de ser pego dirigindo bêbado, estacionando em local proibido, avançando sinal de trânsito, atropelando pessoas, com dinheiro na cueca... Eles não costumam tolerar esses “desaforos”, enquanto nós continuamos propensos a tolerar.
Nas décadas de 1970 e 1980, pessoas pagavam um bom almoço para Ronald Biggs, num bom restaurante, para ouvir suas histórias. Qualquer pessoa que pagasse. Nos anos 2000, Cesare Battisti era convidado para participar de festas com empresários, políticos e artistas. Fernandinho Beira Mar virou paladino da injustiça. Marcola é tratado como autoridade do seu mundo. José Dirceu é o guerreiro do povo brasileiro. Gilmar Mendes é a eminência parda da justiça brasileira. Marina Silva é a salvadora do meio ambiente no mundo. Janja é a mulher mais deslumbrante do Brasil. Alexandre de Moraes é herói nacional.
Lula é presidente da república.
Só um detalhe: todos eles ganham “um bom almoço” para contar suas histórias. É assim que se constroem as celebridades que a mídia vende para os incautos. E em homenagem a Ronald Biggs e seu filho, Michael Biggs, termino com um trecho da música Superfantástico, do Balão Mágico, que, sem querer, nesse trecho, sintetiza bem qual é a função da mídia na celebrização de personagens e consolidação de narrativas. É bem baseado na ideia de que uma mentira contada 1000 vezes vira verdade.
“Vamos fazer a cidade
Virar felicidade com a nossa canção
Vamos fazer essa gente
Voar alegremente no nosso balão”
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