Era uma vez um país onde um grande escândalo de corrupção foi revelado pela justiça, envolvendo desvio de dinheiro público via funcionários colocados em postos chave da administração do governo e de empresas estatais, e que também envolvia empresários de vários setores, também muitos políticos e, dizem, até mesmo o judiciário tava no rolo. Com isso, um ex-presidente da república acabou sendo preso e com ele quase toda a quadrilha envolvida. Parecia que a coisa tava resolvida. Mas não tava nem perto disso.
Acontece que o ex-presidente sabia demais, e o pessoal dele também sabia demais. Enquanto o povo do tal país pensava enxergar uma luz no fim do túnel, tava vendo mesmo o farol de um trem desgovernado vindo em sua direção. Veio, passou por cima de tudo e de todos, e o ex-presidente foi tirado da cadeia, acabou virando presidente de novo, e com ele foram soltos e ‘perdoados’ todos os membros da quadrilha, que hoje ocupam novamente todos os cantos do governo.
Da mesma maneira, os empresários envolvidos também foram perdoados, tiveram multas canceladas e voltaram a negociar com o governo. Até penas de réus confessos foram anuladas, com devolução de dinheiro roubado e tudo mais, e vivem todos felizes. A explicação para toda essa reviravolta foi que o juiz e o promotor na primeira instância trocaram mensagens por aplicativos discutindo os processos, o que os tornou ‘suspeitos’.
Mas, o mais grave mesmo foi o CEP da 13ª Vara Federal de Curitiba. Mesmo após afirmarem diversas vezes que tava tudo certo, um juiz descobriu a gravidade do erro e anulou tudo. Um absurdo jurídico, escatológico, como gostam de dizer os juízes quando se deparam com alguma monstruosidade. Um erro mais grave do que condenar um inocente à morte. Coisas que só acontecem em republiquetas, regimes autoritários, ditaduras, nas quais as autoridades sabem dos graves segredos umas das outras e ninguém larga a mão de ninguém.
Eventualmente, paro e penso qual teria sido o grande motivo para que nossos grandiosos, digníssimos e respeitados magistrados tenham mudado tanto de comportamento desde a eleição de Jair Bolsonaro. Era só antipatia mesmo? Desrespeito? O que mais teria de tão forte a ponto de fazer Gilmar Mendes, constrangidamente, ‘desvotar’ o vigoroso voto que deu favorável à prisão após condenação em segunda instância da mesma maneira vigorosa, pouco importando se estava desdizendo tudo o que disse antes.
Como será que funcionam as conversas no frente a frente nos corredores e gabinetes? Será que é na cara dura, tipo “se você não fizer isso, eu conto aquilo?”, ou “fazendo assim, você ganha tanto”, ou ainda “se não fizer isso, a gente sabe quem são sua esposa, filhos, irmãos, sobrinhos, onde estudam, onde frequentam...”? Ou será que tem um trâmite mais cerimonioso, usando intermediários?
E com senadores e deputados? Chama para conversar no gabinete, senta no sofá para tomar um café, entra no assunto e joga uma pasta bem gordinha de processos e joga na mesa de centro. Pois, nobre deputado, nobre senador, por acaso este processo veio parar nas minhas mãos, envolve seu pai que é prefeito, sua mãe, sua irmã, seu cunhado, seus primos…’ Deve ser alguma coisa desse jeito. Dinheiro nesse caso só rola ao contrário, sabe como?
A chantagistocracia não é um sistema de governo. É uma doença do estado, não importa se o regime é uma ditadura ou uma democracia. Ela corrói o estado por dentro, em todos os níveis, e as relações institucionais passam a se dar através da chantagem, sem que ninguém ameace ninguém ao mesmo tempo, em que todo mundo ameaça todo mundo.
Se você já ouviu se referirem à bomba atômica como arma de dissuasão, ou chantagem atômica, significa ter algo tão poderoso na mão que faz o oponente temer a resposta e desistir de atacar ou só atacar em caso de desespero.
Um bom exemplo disso foi Roberto Jefferson, quando denunciou o Mensalão. Passaram a perna nele numa baita grana, ele ficou bravo, tinha o que dizer e abriu o bico. E deu no que deu. Mas, se ele tivesse recebido a grana dele, não teria feito nada. Teria sido mais barato pagar o combinado.
Agora, vemos os parlamentares que assinaram o pedido de urgência da PEC da anistia sendo chantageados por todos os lados, um lado chantageando o outro para chantagear o terceiro, ameaças utilizando processos, emendas não impositivas, cargos nos diversos escalões, tudo sendo usado para forçar deputados a retirar suas assinaturas do pedido, magistrados envolvidos em pressão política, e os jornais noticiando essas coisas com a mesma naturalidade das fofocas colunas de famosos, tudo normal.
A imprensa extra-oficial não fala mais de crimes, de escândalos, avaliza censura, apoia incondicionalmente ilegalidades e inconstitucionalidades, revelando a intimidade que tem com magistrados, lendo mensagens recebidas no celular, ao vivo, como se estivesse lendo a mensagem de uma pessoa muito próxima, aceitando até se passar por ‘menino de recados’ do Sistema para aqueles que têm com o que se preocupar.
Contudo, não se trata de um novo padrão de jornalismo que se revela só porque tem lado e por isso não se preocupa em mentir, deturpar, aumentar ou mesmo criar factoides. Trata-se de dinheiro. Se não falar bem, não andar aliado ao que o Sistema quer, não tem verba. No lugar, eles dão ameaças, processos, afinal, a concessão pertence ao próprio Sistema.
Se você pensava que os pilares da república eram o executivo, o legislativo e o judiciário, está por fora da engenharia republicana. Eles avançaram muito. Alicerçaram tudo num único pilar, o da chantagem. É por meio dela que nossa república funciona, que somos controlados, censurados, perseguidos, amedrontados, até ficarmos calados. Não temos nada para os chantagear de volta.