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O RIO DE JANEIRO CONTINUA INDO...

A Cidade Maravilhosa é a verdadeira Faixa de Gaza brasileira

Hermínio Naddeo
Por: Hermínio Naddeo Fonte: Crônica
06/03/2025 às 09h39 Atualizada em 07/03/2025 às 10h30
O RIO DE JANEIRO CONTINUA INDO...
Imagem WEB

Morei no Rio de Janeiro uma parte muito significativa da minha vida, saindo da infância até meus 21 anos. Nos primeiros anos vivi no bairro de Santa Teresa, onde jogávamos bola na rua, pegávamos carona nos estribos dos bondes, entrávamos nos terrenos alheios para comer manga, jaca, pitanga, goiaba, tamarindo, vez por outra tendo que correr de cachorros ou de proprietários bravos com nossas invasões. Circulávamos tranquilamente pelas ruas do bairro, frequentávamos as mesmas escolas que moradores de favelas, até mesmo indo às favelas na casa de algum colega para fazer trabalho de escola. A violência máxima daqueles anos de 1970 era ter um boné roubado ou brigar na escola.

Já no início da adolescência, fomos morar em Copacabana, uma mudança completa de paradigma. No lugar das casas com imensos terrenos e árvores frutíferas, um gigantesco complexo de edifícios grudados uns nos outros. Ao invés dos bucólicos bondes, que contribuíam para fazer parecer que os dias eram mais longos, carros e ônibus, sequências intermináveis de semáforos e uma agitação que encolhia nossos dias. Tinha, porém, suas vantagens.

Mesmo não gostando de praia, ela estava disponível logo ali, 5 quarteirões da minha casa. Se não tinha árvores para roubar frutas, não faltavam lanchonetes, quase uma em cada esquina, o que me faz lembrar do saudoso Gordon, que tinha um Canguru na porta, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no qual sempre comia um sanduíche com molho curry. Outro atrativo era a fartura de salas de cinema no bairro, íamos a pé em qualquer um deles, sempre nos sentindo seguros a qualquer hora do dia ou da noite.

No início dos anos 1980 meu pai se separou de sua segunda mulher, e, temporariamente, fomos morar em um trailer em um camping no Recreio dos Bandeirantes, muito longe, época em que ao começar a percorrer a Avenida das Américas depois do Largo da Barra, víamos o Clube Marapendi, depois a, então, interminável obra do condomínio Atahydeville, mais para frente o condomínio Nova Ipanema, em seguida o Carrefour da Barra quando ainda não existia o Barra Shopping, pouquinho mais adiante o condomínio Novo Leblon, e até chegar ao Recreio dos Bandeirantes era um vazio quase absoluto. Morar no camping naquela época era absolutamente seguro, o que eu duvido ser possível hoje em dia.

Cerca de um ano depois, meu pai se casou novamente e mudamos para Ipanema, Rua Barão da Torre entre Farme de Amoedo e Teixeira de Melo. Apesar de todo o glamour de Ipanema, ali a coisa já não era mais tão simples. Bem em frente à Rua Teixeira de Melo, tinha a entrada do Morro do Pavãozinho, e a violência não se resumia mais a roubo de boné ou briga de escola como em Santa Teresa. O ambiente era hostil, com inúmeros episódios de roubos e furtos, em especial aos domingos na feirinha da Praça General Osório. Também não eram raros os episódios de tiroteios que fechavam o quarteirão, nos obrigando a dar uma volta imensa para chegar em casa.

Pouco mais de um ano depois, nos mudamos para um apartamento maior, na rua de trás, Nascimento Silva, quase que exatamente na direção do prédio onde moramos na Barão da Torre e com o privilégio de ter saída para as duas ruas, o que evitava ter que dar a volta no quarteirão inteiro para acessar o prédio. Mas, por outro lado, se quisesse economizar a caminhada, o jeito era passar pela Barão da Torre e correr o eventual risco de encarar algum problema.

Mesmo assim, posso dizer que, com todos os “contras” que foram surgindo ao longo dos anos, circulei pela Zona Sul e pela Barra da Tijuca com relativa tranquilidade a qualquer hora do dia ou da noite, a pé, de carro, de ônibus, de bicicleta. O risco existia, sim, mas era muito baixo, não andávamos com medo, não evitava locais, não ficava trancado em apartamentos ou optava por locais fechados. Inúmeras foram às vezes que fui com meus amigos tocar violão de madrugada na prainha ao lado do clube Costa Brava no Joa, ou que paramos para comer um sanduíche de lombo com abacaxi no Cervantes em Copacabana, esquina de Princesa Isabel com Barata Ribeiro, ou que saíamos de um barzinho e ficávamos andando na praia até amanhecer.

Até virem os anos de 1986 e 1987 e com eles a sensação permanente de insegurança, além de diversos episódios de violência muito próximos. Exemplo disso, a morte do ator Casarré, que morava no mesmo prédio em Ipanema, que morreu dormindo em sua cama, atingido por uma bala perdida vinda do Morro do Pavãozinho. Ou outro momento em que eu estava em um ônibus parado na Barata Ribeiro quase esquina com Miguel Lemos e um tiroteio na rua fez com que todos se deitassem no chão do ônibus, que acabou sendo atingido por umas duas ou três balas, sem, no entanto, fazer vítimas, exceto vítimas do medo.

Foi quando no final de 1987 decidi entregar o apartamento de Ipanema, no qual já morava sozinho, e me mudei para Belo Horizonte, onde meu pai já estava morando há mais ou menos 1 ano.

Após ter me mudado em 1987, estive algumas outras vezes no Rio de Janeiro, algumas a trabalho e outras poucas a passeio para rever amigos, mas nunca mais me senti seguro, procurando, sempre que possível, estar em locais fechados, circular pela cidade durante o dia e evitar locais e situações nas quais não teria o que fazer caso algum episódio de violência pessoal ou circunstancial pudesse acontecer.

Hoje, meus amigos cariocas, que não tiveram a opção de sair da cidade como eu tive, me relatam a insegurança que vivem, os episódios de violência que sofrem ou vivenciam, os medos que têm de sair de casa após determinados horários, a aflição que sentem quando seus filhos estão na rua e a frustração de não ter o que fazer diante das péssimas escolhas de representantes políticos para governar a cidade e o estado, da criminalidade, da inoperância e impotência das forças de segurança da cidade e da impunidade reinante, apadrinhada pela mais alta corte do judiciário brasileiro, fazendo da Cidade Maravilhosa uma verdadeira Faixa de Gaza brasileira.

É. O Rio de Janeiro continua indo. De mal a pior.

 

Errata - Graças ao alerta do amigo Luiz Aviz, corrigi o nome da Rua Teixeira de Melo, a qual, erroneamente, me referi como Rua Teixeira de Feritas antes desta correção.

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LuizHá 2 semanas RJÉ isso aí Hermínio tivemos vidas bem parecidas, Eu vivi como sabe grande parte da minha vida no Leblon, bairro que tanto amava e um apaixonado também por esta cidade mas infelizmente isso tudo acabou. Bem fizeram meus dois filhos que já moram a um bom tempo em Itaipava. A Aquatro teve a conta do Gordon não me lembro se foi no tempo que foi nosso parceiro. Como sempre excelente texto. Abração!
Mônica Ventura Há 2 semanas Campinas/SPNosso amado e lindo Rio de Janeiro! A violência, a insegurança e o descaso expulsam os filhos mais queridos. Que nosso Cristo Redentor derrame luzes e bençãos sobre nossa Cidade maravilhosa!
Marinilse OrfãoHá 2 semanas AmericanaPerfeito sei relato...inicia qdo a cidade maravilhosa era possivel de se viver e depois super perigosa. Parabens por mais um artigo EXCELENTE
ChicoHá 2 semanas CotiaPois é Herminio , o rio da sua lembranca è o meu rio ma memória, desandou de vez com Brizola , saudade de um lugar que foi mágico ,
CíntiaHá 2 semanas São Paulo Belíssimo artigo sobre esse Rio de Janeiro que eu também conheci no início dos anos 80 e que ainda não era tão violento como hoje... Parabéns!
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