“Censura é forma de cala-boca. Pior, de calar a Constituição. O que não me parece constitucionalmente admissível é o esquartejamento da liberdade de todos em detrimento da liberdade de um. Cala-boca já morreu. A Constituição garante”
Assim iniciou seu voto, de forma resumida, a ministra Càrmen Lúcia, quando, em 2016, o STF liberou a publicação de biografias sem prévia autorização dos biografados. O então decano da corte, Celso de Mello, disse: “O peso da censura é insuportável e intolerável”. Mas não ficou só nisso não. A defesa do direito à liberdade de expressão ainda contou com esta pérola vinda do ministro Barroso, dizendo que não deve existir hierarquia entre direitos essenciais, algo que os artigos 20 e 21 do Código Civil faziam ao se sobrepor ao direito de liberdade de expressão garantido constitucionalmente. “Liberdade de expressão não é garantia de verdade nem de Justiça. É garantia da democracia”. Tudo isto pode ser encontrado em matéria do Correio Braziliense, na edição de 11/06/2016, na página 8, e, claro, em outros veículos.
Pois bem! Nem 10 anos se passaram e o cala-boca mostra-se mais vivo do que nunca. De lá para cá a liberdade foi esquartejada em detrimento de meia dúzia, a censura deixou de ser insuportável e intolerável e passou a exigir garantias de verdade e justiça sob o mesmo pretexto de ser ela a garantia da democracia. E, exceto Celso de Mello, que já se aposentou, Cármen Lúcia e Luís Roberto Barroso continuam ministros da casa, mudando de opinião sobre diversos assuntos e continuando a usar a defesa da democracia como pano de fundo para seus arroubos de iluminismo.
Em 2017, Alexandre de Moraes assumiu a cadeira do falecido ministro Teori Zavascki no STF. Depois disso, vários posicionamentos, declarações e até mesmo muitos votos de outros ministros tomaram rumos inversamente proporcionais ao que posicionavam, declaravam e votavam. Bom exemplo disso é o voto do ministro Gilmar Mendes quando desdisse com a mesma veemência e convicção as veemências e convicções que tinha quando votou a favor da prisão após condenação em 2ª instância, momento, inclusive, de causar vergonha alheia - assim como outros momentos em que ele desdisse o que havia dito antes. Outra mudança significativa foi a eleição de Jair Bolsonaro, totalmente fora do roteiro, fora da agenda, coisa que nem algorítimo conseguiu evitar. Mas, o verdadeiro ponto de inflexão aconteceu a partir de outro acontecimento: a delação premiada de Leo Pinheiro. Foi aí que a Lava Jato caiu em desgraça no STF.
O que se pode inferir a partir disso é que a reviravolta foi uma ação preventiva, que, se não se pode afirmar categoricamente, muito menos sem provas, indica que o caminho poderia levar a outros crimes e outros personagens tão ilustres quanto o ministro. O mesmo Dias Toffoli, aliás, também foi citado na delação premiada de Sérgio Cabral. Então, o leitor pode começar a entender a necessidade total de desacreditar a Lava Jato diante da população, macular seus principais personagens, criminalizar investigações, prisões, delações, transformar criminosos em vítimas, revogar sentenças proferidas em 3 instâncias, libertar prisioneiros e até mesmo ajudar um deles a chegar à presidência da república. E para surpresa de ninguém, afinal isso aqui é Brasil, coube ao ministro Dias Toffoli as anulações das sentenças e acordos de leniência que envolveram os principais acusados na operação Lava Jato, incluindo aí o perdão de multas e a devolução de dinheiro e patrimônio apreendidos.
Outro marco temporal importantíssimo foi a eleição presidencial de 2022. Independentemente do que pensa cada um a respeito do resultado, Jair Bolsonaro saiu da presidência da república, mas não saiu da boca do povo. A polarização, que já era grande, tomou proporções impensáveis para a turma que comanda o cala-boca. Bolsonaro consegue reunir mais pessoas no saguão e no entorno de qualquer aeroporto onde desembarca do que Dilmo consegue reunir para assistir suas lives ou mesmo consegue reunir num evento bancado a pão com mortadela para sua claque. E eles perceberam que não derrotaram o Bolsonarismo, e não derrotarão, sendo o único caminho manter o cala-boca cada vez mais vivo.
O julgamento que deve definir a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do artigo 19 do marco civil da internet iniciou ontem, 27/11/2024, com a exposição oral dos argumentos de quem defende sua total constitucionalidade, e terá continuidade hoje, 28/11/2024, com os votos dos ministros. Para a democracia que eles pregam, muito parecida com as democracias da China, da Rússia, de Cuba, do Irã, da Venezuela, de Nicarágua e da Coreia do Norte, é crucial que a população para de discutir política, para de apontar crimes, ilegalidades e inconstitucionalidades cometidas pelo autoinvestimento de poderes que a Constituição não dá ao judiciário e a nenhuma autoridade neste país. É a prática da ditadura falseada na ideia de proteger a democracia de alguma coisa. Lenin, Stalin, Mao Tsé-Tung, Fidel Castro, e praticamente todos os ditadores falavam em democracia, bastando ver o nome da Coreia do Norte, República Popular Democrática da Coreia, provavelmente a ditadura mais bruta ainda existente no planeta.
Não é improvável, ou melhor, é muito provável que no julgamento de hoje a liberdade de expressão sofra seu mais duro golpe no Brasil. Se declarado inconstitucional o artigo 19 do marco civil da internet, as plataformas de redes sociais terão que arcar com a responsabilidade do conteúdo postado pelos usuários, o que, além do processo de censura prévia terceirizada para as plataformas, convenhamos, uma jogada esperta do judiciário para parecer limpinho na questão, poderá desencadear uma debandada das mesmas do país, além de uma mudança radical do ambiente virtual, afetando também o comércio eletrônico e a própria imprensa tem sido uma árdua defensora da censura. E não é muito difícil entender o papel da imprensa nessa questão. As redes sociais eliminaram o privilégio da imprensa tradicional ser a “voz oficial” dos acontecimentos e a principal formadora de opinião. Além disso, e talvez tanto quanto ou mais do que isso, as expressivas perdas de receitas publicitárias e de audiência para a internet. E a gente sabe que esse time joga todo junto.
Aquela ideia democrática de que “posso não concordar com o que você diz, mas vou respeitar sempre o seu direito de dizer” pode estar para se tornar apenas uma frase sem sentido e ser transformada em “não concordo com o que você diz, muito menos respeito seu direito de dizer”, acrescida do corolário “cala-boca não morreu, quem manda na sua boca sou eu”.
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