Como gaúcha, não vou falar sobre o descaso, a politicagem, a crueldade daqueles que deveriam estar com os pés na água e na lama. Esses fatos, apesar dos esforços da mídia e dos poderes executivos para escondê-los, já estão sendo divulgados por quem está na linha de frente lutando pelo Rio Grande do Sul. São homens, mulheres e jovens das mais diversas profissões, cores e crenças, unidos em um só esforço para socorrer o próximo, apesar da dor, do cansaço, da chuva, do frio e do emocional em frangalhos. É o povo pelo povo.
O presente todos estão vendo, mas e o futuro? Como será o amanhã?
O pior ainda está por vir.
A previsão de chuvas fortes e intensas já havia sido alertada em 21/04/2024, às 21:47h, com alertas que se seguiram por dias, conforme podem verificar no link: Defesa Civil RS.
Entre os dias 24 e 30 de abril, o acumulado de chuva no Vale do Taquari chegou a 800mm, provocando inundações em Lajeado, Arroio do Meio, Estrela, Mussum, Roca Sales, Encantado, Bom Retiro do Sul, entre outros, afetando um total de 31 municípios. Para agravar a situação, em 2 de maio, a barragem 14 de Julho, entre Cotiporã e Bento Gonçalves, rompeu, intensificando a destruição com um volume e força inimagináveis.
Uma enchente dessa proporção no Rio Grande do Sul não se resume apenas ao transbordo das águas dos rios e da chuva. Estamos falando da água misturada com esgoto, lixo hospitalar e laboratorial, dejetos de animais, produtos químicos e tudo mais que a força das águas arrastou. Estamos falando de centenas de corpos humanos e de animais, soterrados e afogados, surpreendidos por um volume imenso de água, tamanha a força da onda de 2 metros causada pela queda da barragem, que também provocou o transbordo do Rio das Antas, aumentando o volume do Taquari e outros.
Estamos diante da mudança da geografia de cidades inteiras, cujas casas foram arrancadas do solo, assim como árvores e armazéns, e tudo mais que estava na frente de toneladas de água, após o colapso da barragem. Estamos falando de milhares de desabrigados, de empresas destruídas, de plantações e silos submersos, de estradas e pontes engolidas, de epidemias.
O colapso é inevitável. Mais de 400 municípios foram afetados e alguns terão que ser reconstruídos do zero, depois de resgatar seus cidadãos dos escombros.
Quando as águas baixarem, teremos que contar as centenas de mortos, e considerar desaparecidos os corpos levados pelas águas para o oceano ou já consumidos por peixes, cujos ossos ficarão no fundo de algum rio, lago ou balneário.
Quando as águas baixarem, vamos ver o que sobrou de casas, prédios, galpões, comércios, escolas, hospitais, estradas, ruas e pontes.
Teremos que sobreviver às epidemias de tuberculose, leptospirose, pediculose, hepatite A e B, tétano e outras que, por ora, não quero saber.
Teremos que sobreviver à fome, sede, frio e violência, que aumentarão drasticamente à medida que os recursos básicos escassearem.
Vamos ver e saber de óbitos por pânico, depressão e desespero. Vamos ver óbitos pela precariedade do sistema de saúde e de segurança.
Acha que estou sendo derrotista? Negativa? Drástica? Não. Estou sendo realista.
Não quero tapar o sol com a peneira, nem fingir que basta baixar as águas dos locais inundados para que os desabrigados voltem para suas casas, sentem no sofá e assistam televisão.
Sei que o Rio Grande do Sul continuará contando com o apoio de muitos brasileiros, que têm sido incansáveis no suporte emocional e médico, além do envio de necessidades básicas. Tenho certeza de que o Rio Grande do Sul, além da ascendência europeia, receberá contribuições de todos os estados do Brasil na reconstrução de moradias, escolas, hospitais e tudo mais que for necessário para voltarmos a prosperar. Isso só acontecerá se encararmos a realidade de frente, dispostos a superar, juntos, todas as dificuldades.
Aproveitemos a ocasião para entender, definitivamente, o que é consciência cidadã. Para assumirmos nossa responsabilidade de votar com coerência, de participar das decisões tomadas nas casas legislativas que nos afetam a todos. De exigir dos eleitos a responsabilidade pelo que é público, de impormos princípios e valores morais que enterrem de uma vez por todas esse descaso, esse escárnio que vimos e ouvimos de gestores que só atuam em benefício próprio.
Teremos que trocar sapatênis e saltos por galochas e coturnos.
Que nossas lágrimas façam germinar sementes, que nossas esperanças criem raízes e façam florescer um Rio Grande mais pujante.
"Mostremos valor, constância, nessa ímpia e injusta guerra. Sirvam nossas façanhas de modelo a toda Terra"...