Há uma tara recorrente no imaginário político contemporâneo: a necessidade quase pornográfica de enfiar cada catástrofe histórica em um molde ideológico pré-fabricado. A obsessão moderna não é resolver os problemas de agora, mas decidir, com fervor de torcedor de futebol, se o fascismo era de direita ou de esquerda. Um vício de forma que serve apenas para encobrir a absoluta falência moral, cognitiva e prática da nossa era.
O problema — o verdadeiro problema — não é saber se Hitler votaria no PSDB ou no PT, se Mussolini defenderia a reforma trabalhista ou o MST. O problema é que há sempre um Hitler, há sempre um Mussolini — e, mais grave, há sempre um povo disposto a aplaudi-los. A história, como mãe resignada, nos oferece esse desfile cíclico de canalhas e de idiotas úteis, em revezamento pontual. E cada geração, vaidosa de sua própria ignorância, acredita que está vivendo algo inédito.
O culto ao rótulo ideológico esconde o medo de olhar para o espelho. Quando se debate a cor ideológica de uma desgraça passada, o que se está fazendo é fugir da responsabilidade do agora. A pergunta correta não é “quem foi o culpado?”, mas “por que seguimos permitindo novos culpados?”. Há sempre um imbecil pronto para aplaudir a própria desgraça desde que ela venha embalada com o selo da sua preferência política.
É a infantilização da análise histórica: como se a tragédia precisasse ser “de esquerda” ou “de direita” para ser reconhecida como tragédia. Como se a canalhice precisasse ter CNPJ partidário. Como se a história fosse um tribunal de memes onde se absolve o presente pelo ridículo de condenar o passado.
A verdade brutal — e por isso raramente dita — é que cada momento da história pariu o imbecil que merecia. E muitos desses imbecis, antes de serem vítimas, foram cúmplices. Quem apoia o tirano quando ele ainda está em ascensão raramente se vê como parte do problema. Prefere imaginar-se numa trincheira ideológica de resistência, mesmo que esteja do lado da baioneta.
É preciso romper esse ciclo. Não com revisionismos preguiçosos, mas com a honestidade de reconhecer que o fascismo, o autoritarismo e a imbecilidade não têm lado. Têm ocasião, têm povo, têm circunstância. E, sobretudo, têm sempre quem os justifique com base em conveniências momentâneas.
Portanto, que fique claro: quem gasta tempo perguntando se Hitler era de esquerda ou Mussolini era de direita está apenas confessando sua total incapacidade de lidar com o presente. A história não precisa de juízes de torcida organizada. Precisa de leitores — e, se possível, de pensadores.