Neste espaço em que perambulamos por solitárias, imperscrutáveis e inaudíveis trilhas já ecoamos sobre milhentos temas, de entre eles, um viés sobre o que de melhor já se fez na literatura e da primordial importância que a música encerra em nossa existência.
Falemos agora de sétima arte... Ou, tão só, dum registro em torno desta nossa concretude civilizacional...
Confuso?
Que nada!
Segui o fio de uma nuclear correspondência/correlação que pulula, em toada indagatória, com a qual sereis confrontados no decorrer da presente diegese.
Viajemos, então, até 1999, ano em que MATRIX, depois de realizado e concluído, foi exibido ao público.
Não passastes, desde então, a estar perante um longa-metragem meramente ficcional e pejado de inéditos efeitos especiais - olvidai-o!
Passastes a ser confrontado com um documentário sobre a savana humana e de como ela foi (e é) arquitetada, opera e é regida.
Sim, a MATRIX é real.
Ela se consubstancia na pungente realidade representada na massiva doutrinação das mentes a todos os níveis possíveis e imaginários: social, cultural, histórica, geopolítica, educacional, religiosa, criacionista, cosmogônica e, em seu último estágio, pela via tecnocrática.
A obra cinematográfica não apenas traz em seu enredo um questionamento sobre o que é o real e o que é simulação do ponto de vista tecnológico. Num formato metalinguístico ela desdobra-se nos mais diversificados sentidos e ambiguidades, tal qual esta ambígua realidade em que nos percepcionamos vivos, inseridos e tidos como “conscientes”, mas que constantemente, e a todo o tempo, pré-determinada, fabricada e roteirizada.
Quando uma mentira é repetida vezes sem conta ela se torna parte da realidade. E quando pessoas suficientes aprendem e assimilam essa mentira ela se entrelaça na cultura.
É assim que todas as crenças possíveis e imaginárias são acolhidas e incrustadas sem esforço.
E com que facilidade as pessoas têm sido levadas a aceitar ilusões como verdades inabaláveis.
Os nossos “programadores”, primeiro, reduziram o universo dos fatos reais acessíveis a nós a meras intercepções fracionárias ínfimas do ínfimo. Depois reduziram tais intercepções a uma esquemática pré-determinada, planejada, genérica e conceitual, ou seja, reduziram a inteligibilidade a construtos por eles concebidos e inseridos já totalmente apartados do factual e do real – tal como retratado no filme...
Neste somos, arrebatadoramente, tragados para uma realidade virtual projetada nas mentes humanas levado a cabo por máquinas que desenvolveram uma inteligência artificial de tal forma avançada que lograram dominar a humanidade por completo.
Porventura não caminhais para algo assim?...
Mas, ainda que tal cenário – uma I.A. tirânica e acachapante – já se vislumbre no campo projetivo, será que já não te encontrais, desde sempre, inserido num totalitário sistema de controle e domínio do qual participais sem saber que estais em cativeiro e que vos escravizai logo à nascença?...
Tal real algoz será uma entidade espiritual, serão algumas poucas mentes humanas ou algo inominável que nem sequer concebemos?...
Seremos prisioneiros de um simulacro sui generis numa versão analógica do que acontece no filme?...
Morfeu, um dos personagens pilares no filme, revela que o mundo conhecido por Neo – o herói da trama – a bem da verdade, é uma realidade virtual e imaginária. Que máquinas sencientes dominaram a humanidade, subjugaram a espécie e passaram a extrair toda a energia, e alma, de seus corpos e mentes entorpecidas, organizando-os/segmentando-os em enormes “fazendas de gado humano”.
Independentemente do que é que, genuinamente, nos domina, não te sentis assim na vida real?...
Numa insustentável sensação de que há algo de muito errado com este mundo?...
Morfeu é o líder da rebelião contra a inteligência artificial e traz Neo para a realidade na famosa cena da pílula vermelha – a pílula da verdade, do discernimento e da clarividência, em detrimento da azul, numa alusão ao fato de que todo o mecanismo tiranizante modifica, acima de tudo, os significados dos símbolos e signos, criando um linguístico desvirtuamento do real.
E não é exatamente o que ocorre nesta nossa imanência?...
De que, afinal, o que enxergamos é uma alucinação, um delírio, uma cenoura d’ burro reforçada a todo o tempo pela linguagem veiculada na cultura como um todo, na educação formal e informal, na mídia, no entretenimento em geral e no falatório do dia a dia?...
De que a verdadeira história da humanidade, a razão das coisas, os enredos palacianos e os bancos de dados nos foram (e são) constantemente suprimidos da cognição, da consciência e da memória?
Não será esta nossa concretude a materialização da metáfora ontológica da obra ficcional em análise: uma mera programação alienante e exasperadora, pejada de pessoas se movendo e vivendo, de lá para cá e de cá para lá, sempre deveras ocupadas, abduzidas e distraídas, se comportando como autênticos autômatos e NPC’s até à incontornável finitude (meras figuras de corpo presente)?...
A MATRIX cinematográfica retrata um mundo virtual no qual os seres humanos são cultivados em massa para alimentar todo um sistêmico mecanismo. Um computador mastodôntico escravizante que faz uso da própria mente das pessoas para controlar seus sentimentos e pensamentos, fazendo-os crer que é real aquilo que é aparente.
Substituí as máquinas por uma plutocracia e seu establishment – modo de vida, dinheiro, dívida, governos, politicagem e sistema de crenças – vedes a similitude?...
Neo, na ficção, descobre então que toda sua vida fora vivida dentro de uma intrincada realidade simulada. Que tal onírico mundo fora projetado pela inteligência artificial com objetivo de distrair os humanos em uma realidade paralela, a espaços, aprazível.
Uma experiência humana como que parecendo ser o resultado de um sonho ou de um engano sistemático malévolo.
Por acaso não viveis e jazeis no maligno acreditando, pensando, almejando e sonhando com o paraíso perdido?...
Só indivíduos livres que pensem e se posicionem fora da reclusa caixa podem mudar o futuro e o danado destino – a imagem, simbolismo e mensagem basilar da trama.
Neo deverá escolher entre romper com o paradigma vigente e aceder à realidade (pílula vermelha) ou permanecer no simulacro da MATRIX (pílula azul).
Não será a mensagem e o desenho que vós precisais, derradeiramente, entender neste estatizante, engessado e infesto coletivismo?...
Nesta agrilhoante e trituradora pirâmide financista e monetária onde tudo e todos se encontram plugados e se movem hipnotizados, zumbificados, coisificados e agrilhoados?...
Nesta mentira globalóide, universal e planetária?...
A sacerdotisa que contracena e personifica o Oráculo transmitindo sabedoria de forma meiga, sentada sobre uma banqueta de três pés, inalando fumaça e bebendo um líquido não identificado, às tantas, brada a Neo a clássica e esfíngica máxima: “conhece-te a ti mesmo”.
A apologia motivacional que estimula o indivíduo a perseguir o desiderato de se aprimorar, buscar as verdades mais profundas e os mistérios mais recônditos dentro de si.
Enfatizando que a teia do destino humano é construída, sobretudo, pelas escolhas que se fazem e que estas se sobrepõem à determinística binaridade causa-efeito.
Já imaginastes se cada pessoa neste mundo seguisse à risca e a rigor o que certos oráculos ecoam, aqui e ali, e lhes tentam dizer, mostrar e vaticinar?...
Como no filme, na vida real as mentes humanas que se encontram plugadas, trabalhando dia e noite para o sistema, passaram a aceitar a simulação como real.
Vale ressaltar que muitas das decisões tomadas pelos humanos na ficcional MATRIX são manipuladas pelas próprias máquinas, através de variáveis que elas passaram a entender sobre nossa espécie, mediante um movimento chamado de ilusão da escolha. Que desde que as mentes achassem que tomariam decisões por si mesmas, passariam a aceitar a simulação sem qualquer empecilho ou questionamento.
Não será o que, precisamente, ocorre com a humanidade em geral?...
Neo – palavra que deriva do grego e que significa novo –, na película, através de suas ações, inaugura um tempo em que a humanidade passa a ter, finalmente, a possibilidade de vencer as máquinas.
O escolhido; O salvador.
De entre as alegorias cristãs que surgem na franquia, esta é a principal e mais evidente: Neo remete a Jesus.
Além de se revelar um verdadeiro Messias para a Resistência, o herói também morre e regressa à vida, algo que remete à ressurreição de Cristo.
Nele também vemos o caráter dual presente na narrativa bíblico-histórica: se na MATRIX é uma espécie de deus, no mundo real tem a fragilidade de um ser humano.
E o que é que vós achais que acontecerá a todo aquele que alcance a consciência crística, passe a manifestá-la e através dela mobilize uma enorme quantidade de pessoas?...
Será que o Sistema reagirá por se sentir ameaçado?...
Morpheus – um Mestre na verdadeira acepção da palavra e líder do movimento da Resistência –, seu nome, ainda que inspirado no deus grego do sono e dos sonhos, no enredo, todavia, representa exatamente o aposto: o de fazer despertar os humanos para a dura realidade à margem da MATRIX.
Ao recrutar membros para a luta a favor da humanidade, ele também os conduz ao verdadeiro conhecimento. E de entre todos os seus dons o maior é a fé que deposita nos outros e o modo como consegue inspirá-los a combater.
Além de ser o mentor de Neo, Morpheus é o único que nunca duvida da profecia oracular nem do seu caráter messiânico.
Na vida real a Fé é o quê mesmo?...
Quem não aspira ao surgimento dum genuíno e auspicioso líder que nos represente e nos leve a acreditar num paradisíaco e harmonioso mundo?...
Quem, de entre vós, não rogai constantemente a que algo nos salve e redima desta realidade marcada por fugazes e espaçados momentos de prazer / felicidade em meio a uma eternidade de padecimentos mil?...
O irascível Agente Smith protagoniza na trama o propósito de manter a ordem dentro do sistema, exterminando humanos e programas que provoquem instabilidade na realidade simulada, enfatizando e pondo a nu, freneticamente, a temática da conformidade versus individualismo.
Toda a ameaça ao status quo, encabeçada por Morpheus, seus asseclas e protagonizada por Neo, passa então a sofrer uma perseguição implacável e impiedosa por parte do Agente Smith.
Quem (muito poucos, raros, estou ciente) não se tem visto e confrontado com bateladas de Agentes Smith’s que, ao serviço desta quimera existencial, sejam por estar ao serviço dela, sejam por dela se beneficiar de alguma forma, seja por idiotice útil, seja por pura alienação e ignorância, ficam no seu encalço patrulhando-o, cutucando-o, sondando-o, aporrinhando-o, demonizando-o, ofendendo-o, ostracizando-o, banindo-o, taxando-o de tudo e mais alguma coisa, punindo-o, até (e nos casos mais extremos, eliminando-o), sempre que esse alguém reage ao que aí está, fala verdades indesejáveis, tenta alertar ou se contrapõe a ordenamentos, determinações bizarras, insanidades e a toda esta malignidade que nos traga e exaspera?...
A MATRIX (o filme) não apenas, repetimo-lo, se apresenta como um documentário preditivo, ele revela, alegoricamente, como toda a nossa civilização foi assente, estruturada e é pautada, escancara a próxima via crucis que já estamos trilhando e o futurístico calvário que nos espera a breve trecho, este sim, já num literal metaverso...
Eco
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