A RAIZ DO RISO
Em Salvador, Bahia, cidade onde nasci e me criei, o deboche é uma arma afiada de interação social, algo a que sempre fui refratário. Nunca conseguia compreender como o povo da minha região, sendo pobre, sem acesso ao básico da educação ou da alimentação, poderia expressar tamanha disposição ao riso. O talento para colocar apelidos e satirizar pessoas ou situações na Bahia é inigualável. Eu enxergava as dores sociais existentes e calculava como poderia escapar da sentença política do meu estado por meio do estudo.
Sem notar, também comecei a ironizar, debochar, colocar apelidos e rir da própria desgraça. Isso me levou a arrumar algumas brigas, mas também me inseriu num tecido social do qual, mais tarde, sairia mais resiliente, inteligente e tolerante. Isso porque o fato de encarar a realidade com humor não me alienava (como eu imaginava), mas me fornecia um outro prisma de interpretação. Ou seja, uma camada analítica era adicionada ao meu mundo de adolescente baiano. Logo, a marca de sapato Kichute, betume, carvão, asfalto, dentre outras substâncias utilizadas para se referir à minha cor de pele (preta), passou a ser vista por mim como gatilho para eu usar: macarrão sem tempero, coalhada, Parmalat, vômito de bebê, cor de gala, etc. Era a dinâmica do jogo.
Mas eu cresci, e, logo que meu pai trouxe uma TV para casa, descobri que aquilo que eu via na rua e na escola não era tão anormal assim e não se resumia à cultura baiana: era o Brasil todo. Eu assistia a Os Trapalhões, desenhos animados, programas de humor como Casseta & Planeta, A Praça é Nossa, Sai de Baixo e tantas outras atrações humorísticas.
Eu vi que dentro da minha própria casa, havia uma necessidade de manifestação de protesto. Criado e educado sob um rigor indizível, a inquestionável da casa (minha mãe) era soberana. Olhando com a ótica de um adulto, era um completo abuso de autoridade. Eu sou o filho mais velho, e todas as minhas tentativas democráticas de argumentar com ela foram multadas. Meu irmão Leandro (oitavo filho) nasceu para mudar essa história. Ele nasceu com o dom do desafio por meio da ironia. E é assim até hoje. A coragem de Leandro quebrou a ditadura lá de casa. O humor dele é uma mistura de @TomCavalcante1 com @whindersson e Tiririca. Essa capacidade demoliu o intocável reinado da minha mãe.
Mas eu só entenderia o poder do humor, ou essa capacidade de enxergar a vida sob um prisma mais leve, a partir da doença degenerativa de minha quinta irmã, Celiester. Aprendi a lidar com uma realidade que eu não queria aceitar: a impossibilidade de regeneração neurológica dela. Ela ia se degenerando, atraindo o olhar de espanto e de pena dos vizinhos e dos próprios irmãos. Os detalhes são muito tristes (contei em meu livro Traumas da Fé: 12h no Paraíso), e não quero citá-los aqui. Quando me vi obrigado a aceitar aquela situação, comecei a levar minha irmã para a praia na cadeira de rodas (ela não andava mais) e dava banho de mar nela. Ela amava e fazia um esforço para balbuciar alguma palavra. Eram sons de alegria que mudavam o meu dia. Ela sorria enquanto eu a carregava e a jogava na água. Isso se repetiu tanto que criou um laço muito forte de segurança entre nós.
Celiester se foi em 2021, e eu tive o prazer de vê-la cinco meses antes de sua partida. O que notei naquele olhar me assegurou de minha utilidade e valor como ser humano para ela, mas também falou sobre mim.
Uma pessoa que faz alguém sorrir fala muito mais sobre ela mesma do que sobre quem a ouve. Ela tem a capacidade de guiar a pessoa para fora da caverna do terror e da guerra psicológica, o que deve ser considerado como um exemplo de altruísmo e amor ao próximo, não como um crime.
São Bernardo de Claraval e São João Crisóstomo viam o riso, a sátira ou a irreverência como pecaminoso, pois poderia levar à vaidade, à distração espiritual ou ao desrespeito pela autoridade divina. Mas nós não estamos na Igreja da Idade Média.
Sérgio Júnior