Em uma série de operações que parecem saídas de um roteiro policial, a Polícia Federal (PF) vem desmontando esquemas criminosos que desviaram milhões do Programa Farmácia Popular, iniciativa do governo federal que garante medicamentos essenciais a preços baixos ou gratuitos. Com operações como Fake Sale, Arthron e Abutre, a PF revelou um submundo de farmácias fantasmas, CPFs roubados e até ligações com o tráfico internacional de drogas. Auditorias da Controladoria-Geral da União (CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU) estimam que, entre 2015 e 2020, fraudes no programa podem ter causado um rombo de R$ 2,6 bilhões. A pergunta que fica é: como um programa tão vital para milhões de brasileiros virou alvo fácil de golpistas?
O golpe das farmácias de papel
O modus operandi é tão engenhoso quanto descarado. Criminosos compram CNPJs de farmácias credenciadas no Farmácia Popular, muitas já fechadas, mas ainda ativas no sistema do Ministério da Saúde. Esses estabelecimentos, que muitas vezes existem só no papel, são usados para simular vendas de medicamentos. CPFs de cidadãos – vivos ou mortos – são inseridos no sistema, junto com receitas falsificadas, para gerar reembolsos indevidos. Em alguns casos, até assinaturas de médicos foram forjadas, como apontou o Ministério Público Federal (MPF) em denúncias no Rio Grande do Sul.
Na Operação Fake Sale, deflagrada em dezembro de 2024, a PF descobriu fraudes de R$ 20 milhões em Luziânia, Goiás. Uma investigada, agindo como “despachante”, adquiria farmácias em nome de laranjas e manipulava o sistema para inflar lançamentos de vendas. Já a Operação Arthron, em fevereiro de 2025, expôs uma quadrilha que usava 28 farmácias para lavar dinheiro do tráfico internacional de drogas, desviando R$ 39 milhões do programa. A operação, que mobilizou 100 policiais em cinco estados e no Distrito Federal, bloqueou bens dos suspeitos e revelou a sofisticação do esquema: farmácias recebiam até R$ 90 mil mensais em repasses, contra R$ 5 mil quando operavam legalmente.
A Operação Abutre, de 2020, já havia dado o alerta de que um grupo em Goiás comprou farmácias, encerrou suas atividades e forjou vendas, embolsando R$ 10 milhões. O delegado Franklin Medeiros, à época, descreveu como os criminosos “promoviam lançamentos fraudulentos utilizando CPFs de terceiros”.
Um rombo bilionário
A CGU, em auditoria de 2023, cruzou dados de 30 mil farmácias credenciadas e encontrou irregularidades gritantes: R$ 2,57 bilhões em vendas sem notas fiscais e R$ 7,4 milhões registrados em nome de pessoas falecidas. Isso representa 17,4% das operações entre 2015 e 2020. “É um desperdício de recursos públicos que poderiam salvar vidas”, diz o relatório. O TCU, por sua vez, contabilizou R$ 107 milhões em desvios em 302 processos nos últimos cinco anos, com farmácias condenadas a devolver valores.
No Rio Grande do Sul, a situação é alarmante. Farmácias em Cachoeira do Sul e Lagoa Vermelha estão entre as “campeãs” de fraudes, segundo a CGU. Uma investigação revelou que cidadãos, incluindo mortos, apareciam como beneficiários de medicamentos que nunca receberam. A procuradora Letícia Carapeto Berdt destacou: “Os auditores verificaram que médicos não prescreveram as receitas ou que as assinaturas eram falsas.”
Fragilidades expostas
Como esses esquemas prosperaram por tanto tempo? Especialistas apontam falhas estruturais. O Ministério da Saúde, segundo o TCU, sofre com escassez de servidores para fiscalizar as mais de 27 mil farmácias credenciadas. Em 2016, o Departamento Nacional de Auditorias do SUS (Denasus) tinha 748 funcionários; hoje, são apenas 449. “O tempo para realizar uma auditoria pode chegar a três anos”, lamenta João Paulo Martins Viana, da Unasus.
A falta de integração entre sistemas também facilita fraudes. Gustavo Pires, do Conselho Federal de Farmácia, sugere maior comunicação entre os conselhos regionais e o Ministério da Saúde. “Os sistemas deveriam detectar farmácias irregulares”, diz. O advogado Fabiano Machado da Rosa, especialista em compliance, vai além: “É uma prática criminosa que se perpetua pela ausência de fiscalização contínua.”
Respostas do Governo
O Ministério da Saúde admite fragilidades no Programa Farmácia Popular e tem tomado medidas para reforçá-lo. Em 2023, o programa foi revitalizado com a retomada de acreditações de farmácias, após sete anos de estagnação (2015–2022). O orçamento, que caiu de R$2,5 bilhões em 2019 para R$2,04 bilhões em 2022, saltou para R$5,4 bilhões em 2024, segundo o Relatório de Gestão do Ministério da Saúde. Novas ações de fiscalização também foram implementadas: entre 2023 e 2024, 1.238 farmácias foram suspensas e 363 descredenciadas por irregularidades, conforme dados da Controladoria-Geral da União (CGU). Multas aplicadas em 2023 cresceram 771% em relação a 2022, sinalizando maior rigor.
Desde 2022, uma metodologia de auditoria baseada em inteligência artificial e cruzamento de dados com a Receita Federal tem ajudado a detectar fraudes. A plataforma Meu SUS Digital, que sucedeu o ConecteSUS, permite aos cidadãos verificarem retiradas de medicamentos em seu nome, facilitando a identificação de desvios. O Ministério estuda ainda a adoção de biometria para validar dispensações, visando coibir o uso indevido de CPFs, como apontado em relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU).
O Impacto nos Brasileiros
Enquanto fraudes drenam recursos, milhões de brasileiros dependem do Farmácia Popular para tratar condições como diabetes, hipertensão e asma. Criado em 2004 e fortalecido em 2023 com orçamento recorde e gratuidade total desde fevereiro de 2025, o programa atende mais de 21 milhões de pessoas, cobrindo 93% dos municípios, segundo o Ministério da Saúde. Ainda assim, desvios de R$2,6 bilhões entre 2015 e 2020, identificados pela CGU, ameaçam sua sustentabilidade. “Essas fraudes não roubam apenas dinheiro; elas sabotam a saúde pública”, alerta a procuradora Sônia Nische, que apura 300 denúncias contra 50 farmácias.
Para Luiz Felipe Cruz, analista fiscal em São Paulo, o golpe foi pessoal. Ao acessar o ConecteSUS, ele descobriu retiradas de medicamentos em seu nome em Sidrolândia, Mato Grosso do Sul, a mais de mil quilômetros de casa. “Nunca pisei lá. Meu CPF foi usado sem meu conhecimento”, desabafa. Apesar de casos como esse, a ausência de reclamações generalizadas durante 2019–2022, como muitos brasileiros lembram, sugere que o programa manteve acesso razoável em áreas urbanas, enquanto impactos em regiões remotas, como Norte e Nordeste, passaram menos percebidos.
O que vem pela frente?
As operações da PF e as auditorias da CGU e do TCU são um passo para estancar a sangria, mas o problema exige soluções estruturais. Servidores do Denasus cobram mais fiscais e investimentos em tecnologia. O TCU, em 2023, recomendou um plano de tratamento de riscos e o descredenciamento imediato de farmácias sem comprovação de vendas.
Enquanto isso, o cidadão comum pode se proteger. Acesse o Meu SUS Digital, verifique seu histórico de retiradas e denuncie irregularidades. O Farmácia Popular é um direito, mas sua sobrevivência depende de todos nós.