E lá no Presídio Colmeia, quando cheguei na terça-feira, dia 10.01.2023, tinha colchão comprado recentemente. Estavam nos esperando com cobertores e colchões novos e éramos centenas de novas detentas. Os tiramos dos sacos plásticos para nosso uso e a gente sabe que não é comum isso acontecer num presídio brasileiro. O fato dessa compra programada levantou fortes suspeitas de que aguardavam a chegada de um grande contingente de pessoas naquele final de semana.
Eu convivi por meses com aquelas mulheres e tenho certeza de que todas elas não quebraram nada, não vandalizaram. São inocentes e essa dor da injustiça é terrível.”
O título é provocativo e é um convite para ler o relato da Fabiana Sanches Prado, 45 anos, que trabalhou mais de dez anos na Educação como professora de Geografia e coordenadora pedagógica, mas atualmente é esteticista, profissão que exerce há dez anos. Ela foi para Brasília porque não se conformava de os brasileiros não ter em mãos o código fonte que revelaria a verdade sobre as urnas das eleições de 2022.
A partir de agora você lê o que Fabiana deseja que as pessoas saibam sobre os traumas vividos em Brasília no ano passado.
“A falta de transparência somado ao fato de saber o que acontece nos países comunistas, nas ditaduras, me deixaram apavorada com os rumos que o nosso país estava tomando. Senti receio de ver o nosso país devastado por corruptos e ditadores, então decidi sair do sofá.
A primeira oportunidade que eu tive foi de ir para o Tiro de Guerra de Poços de Caldas, onde foi montado um QG de patriotas. E lá foi feita uma vaquinha para contratar um veículo para ir a Brasília. Fomos de carro no dia 29 de dezembro em busca da verdade e, naquele início de janeiro, foi combinada a passeata pacífica até a Esplanada.
No 8 de janeiro, não tive condições de ir até a Esplanada, porque na 6ª feira anterior eu passei mal após ter jantado, assim como um colega. Eu queria participar da manifestação, estava um pouco melhor, mas esse meu amigo estava muito mal ainda e não tive coragem de deixá-lo sozinho.
Nosso grupo de patriotas de Poços de Caldas tinha ampliado com a chegada de mais um ônibus da nossa cidade, e a proposta era que eu voltaria de carro ainda naquele dia. Pensei até que poderia dar uma passada para vermos todos no gramado e depois seguir de volta para casa. Era o que passava na nossa cabeça, mas não foi o que aconteceu.
SEQUESTRO NO ACAMPAMENTO
Então, mesmo não tendo pisado na grama, fui sequestrada dentro do QG no dia 09/10/2023, a mando dos ditadores desse país. No dia anterior, eu presenciei um senhor chegando da Praça dos Três Poderes com a perna machucada. Ele tentou parar uma pessoa que estava quebrando e ele não conseguiu, e essa mesma pessoa o machucou. Na sequência, uma moça de 30 e poucos anos chegou no QG com o braço machucado, desesperada atrás da filha que havia ficado no acampamento. Ela também falou que tentou parar uma pessoa que estava quebrando e não conseguiu, então voltou desesperada. Quem desceu do QG para a Esplanada voltou com a informação de que não era seguro ir até lá.
Nós fomos obrigados a permanecer no QG. Eu estava bem próxima ao carro de som e podia ouvir o tempo inteiro alguém repetindo: “Não saiam do QG! Não saiam do QG! Uma van saiu e as pessoas foram presas. Um ônibus acabou de ser preso. Não saiam porque terá um horário em que todo mundo poderá sair. Esperem as ordens”.
Eu ouvia isso o tempo inteiro, a madrugada inteira, até que a gente se foi para a barraca e pela manhã nos deparamos com aquela situação de sequestro. A ordem era entrar nos ônibus, porque seria feito um cadastro de todos nós e iríamos embora.
Não foi nada disso. Um casal de amigos estava no carro no estacionamento e conseguiu ir embora. Nós estávamos do lado de dentro do cordão de isolamento dos policiais e eles não permitiram que eu e outra pessoa atravessássemos.
OS PIORES DIAS DA MINHA VIDA
Dentro da prisão eu passei os piores dias da minha vida e, ao mesmo tempo, foi quando mais me aproximei de Deus. Só assim para passar por aquilo. Tive risco de AVC lá dentro. A minha pressão subiu bastante e tiraram a minha medicação do coração. Fiquei uma semana sem tomar nada e só fui atendida depois de dez dias. A minha família ficou sem notícias minhas por dias, sem saber se eu estava viva ou morta. E quando sai do presídio Colmeia, em Brasília, ao invés de voltar para Poços de Caldas escolhi ficar com minha família em Muzambinho, MG.
Larguei todas as minhas clientes em Poços de Caldas, fechei a minha sala de estética, fiquei em depressão por cinco meses . Eu não conseguia aceitar de maneira nenhuma que mais que 84 mulheres que estavam presas comigo pelo mesmo motivo ficavam para trás. Até hoje continua sendo muito difícil conviver com a ideia de tantas prisões injustas. É inadmissível que a gente viva dessa forma no Brasil.
COMIDA RUIM E MUITO MEDO
Lá dentro eu perdi 5 kg e meio em 10 dias para passar fome. A comida era horrorosa e tinha um líquido nela que parecia um soro de leite com uma gotinha lilás, e um cheiro horrível. Pouco a pouco foram diminuindo aquele líquido na comida, isso depois de mais ou menos dez dias. A partir daí eu ainda conseguia comer alguma coisinha, mas a comida era crua, azeda, ao ponto de muitas vezes jogar tudo fora. Tinha caco de vidro, bicho, cabelo e coisas do porco então que ninguém pode ter noção do que vinha.
Eu agradeço muito a Deus por ter saído viva de tudo isso. Antes de entrar naquele ônibus eu o quase desmaiei por três vezes. A sensação realmente era de que nós estávamos na Alemanha nazista, naqueles trens do Holocausto. A sensação era ruim o tempo inteiro, a cada lugar, a cada carro, a cada ônibus, a cada sala que a gente entrava. A gente sentia que iriam fazer algo muito grave com a gente. Eu tive muito medo de não voltar para casa. Sei que algumas pessoas não sentiram isso, mas é uma pequena parte dos presos políticos. A maioria sentiu muito medo.
CÂNCER DE MAMA
Quando estava há dez dias dentro do Colmeia, eu soube que teria que tratar de um câncer de mama quando eu saísse. Foi lá dentro que descobri. Eu falei com Deus que era demais para mim, pois além de estar presa injustamente eu ainda tinha aquele problema de saúde. Me faltava estrutura para passar por um processo desses. Minha família orou muito por mim, assim como as mulheres que conheci no presídio, com muitos louvores, pediram a Deus para que eu não tivesse que passar por isso.
Ao sair, quando fiz os exames dos dois nódulos, um em cada mama, eles tinham desaparecido. Refiz o exame a pedido do médico, porque o que ele tinha em mãos apontavam a presença dos nódulos, e realmente foi constatado que não existia mais nada. Foi uma bênção!
INFILTRADOS
Os relatos de quem foi para Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro dão conta de que estava cheio de infiltrados por lá. Quem subiu de volta para o QG contou que tinha muita gente lá passando mal, por ter inalado a fumaça das bombas ou por ter levado tiros de borracha que vinham de todos os lados.
Quando chegaram os prédios já estavam quebrados, já tinha gente lá dentro. Armaram a pior das armadilhas. Toda hora chegava gente de volta da praça para o QG contando a sua história, que viveu o terror.
E lá no Presídio Colmeia, quando cheguei na terça-feira, dia 10.01.2023, tinha colchão comprado recentemente. Estavam lá nos esperando, com cobertores e colchões novos para centenas de novas detentas. Os tiramos dos sacos plásticos. Não é comum isso acontecer num presídio brasileiro e isso levantou fortes suspeitas de que estava programada a nossa chegada naquele final de semana”.
Convivi por meses com aquelas mulheres presas pelo 8 de janeiro no presídio e tenho certeza de que todas elas não quebraram nada, não vandalizaram. São inocentes e essa dor da injustiça é terrível.
SEM MEDICAÇÃO, SEM ÓCULOS E SEM ROUPAS
Ao entrar no Colmeia fiquei sem a medicação para coração e as minhas vitaminas que tomava diariamente para manter a minha imunidade. Tiraram os meus óculos e a roupa que vestia, inclusive roupa íntima.
Fiquei uma semana com a mesma roupa, sem toalha de banho. Para enxugar o corpo, passávamos as mãos e logo vestíamos a mesma roupa.
Eu menstruei lá dentro fora de época, nunca tinha acontecido na minha vida, sou toda regulada.
Numa madrugada eu senti muita dor e, ao levantar, me deparei com a situação. Eu não tinha como colocar um absorvente por estar sem calcinha, mas uma colega de cela que conseguiu entrar com uma (só era possível entrar com calcinha se ela fosse clara) tirou e emprestou para que eu pudesse colocar um absorvente.
CANDIDATURA
Após fazer o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) proposto pelo governo, com admissão de uma culpa do ocorrido em 8 de janeiro que eu não tenho, minha tornozeleira foi removida. O que me veio em mente foi me candidatar ao cargo de vereadora de Muzambinho e lutar pelos meus irmãos patriotas. Não fui eleita nesse 6 de outubro. Fiz o meu possível, mas ainda estou no período de cerceamento das redes sociais.
Foi a segunda vez que me candidatei. A primeira foi quando eu tinha 21 anos, mas na época não entendia nada de política e entrei num partido de legenda muito alto, tive mais votos do que a última colocada e mesmo assim não entrei na Câmara de Vereadores. Depois disso terminei a faculdade, fui para o Paraná trabalhar em Cianorte e, na sequência, passei no concurso no Estado de São Paulo.
VIDA DEPOIS DO CÁRCERE
Para sair do choque que foi a experiência em Brasília, eu comecei a olhar para os meus sobrinhos, que são uma alegria para a nossa família. A minha irmã voltou a trabalhar no banco e eu cuido das crianças para ela. Atendo algumas clientes na casa da minha mãe, hoje moro na casa dos meus pais, mas logo quero locar uma casa para ter a minha própria vida.
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