O conceito de direita no Brasil sempre foi um tema nebuloso, marcado por ambiguidades e lacunas estruturais. Historicamente, a direita brasileira careceu de características fundamentais que definem movimentos conservadores ou liberais robustos em outros contextos: doutrina consistente, lideranças intelectuais duradouras, militância organizada e senso estratégico de guerra cultural e ocupação de espaços de poder. Este artigo propõe uma análise crítica e reflexiva sobre a ausência de uma direita organizada no Brasil, culminando com o fenômeno do bolsonarismo e sua incapacidade de consolidar uma força política coerente.
A DIREITA HISTÓRICA BRASILEIRA: AUSÊNCIA DE BASES SÓLIDAS
Diferente de países onde a direita se estabeleceu como um movimento coeso e ideologicamente fundamentado, o Brasil não presenciou o surgimento de uma direita organizada. Desde o período colonial, elites econômicas e políticas exerceram o poder de forma patrimonialista, sem a necessidade de mobilizar massas ou construir uma narrativa ideológica. No Império, conservadores e liberais divergiam mais em termos pragmáticos do que em princípios filosóficos.
Além disso, nunca se teve no Brasil um partido político de direita estruturado, com base, doutrina e objetivos claros. O máximo que existiu foram indivíduos com pensamentos conservadores ou liberais que, de forma desconexa e desorganizada, foram rotulados como representantes da direita. Essa ausência de estrutura foi, e continua sendo, explorada de forma proposital pela esquerda, que se beneficia ao apresentar a direita como um grupo desarticulado e desprovido de coerência ideológica.
Conforme afirmou o historiador Paulo Mercadante, em seu estudo sobre o conservadorismo brasileiro, “o Brasil carece de uma tradição conservadora consolidada; aqui, o conservadorismo é pragmático, não doutrinário, e se manifesta mais como uma defesa do status quo do que como uma proposta filosófica ou política organizada.”
Durante o século XX, figuras conservadoras e alinhadas com o status quo emergiram, mas raramente articuladas em torno de uma doutrina clara. O regime militar (1964-1985), por exemplo, era essencialmente reativo, anticomunista e voltado para a manutenção da ordem, sem produzir intelectuais ou ideologias próprias. Como apontou Olavo de Carvalho, “a direita brasileira não perdeu a guerra cultural porque foi derrotada; ela nem sequer lutou.”
O FENÔMENO BOLSONARISTA: FRAGMENTAÇÃO E SUPERFICIALIDADE
O movimento bolsonarista é frequentemente associado à direita contemporânea, mas a análise mais criteriosa revela um fenômeno desconexo, mais próximo de um nicho de mercado do que de um projeto político consistente. A ascensão de Jair Bolsonaro à presidência foi marcada pela ausência de uma base ideológica sólida. Seu discurso simples, reativo e de apelo emocional serviu para canalizar frustrações populares, mas falhou em construir uma estrutura política duradoura.
1. Ausência de Doutrina e Intelectualidade
O bolsonarismo não apresenta uma doutrina organizada. Seus slogans – como “Deus, Pátria, Família e Liberdade” – são repetidos por militantes sem compreensão profunda. Não há intelectuais de peso produzindo reflexões que orientem o movimento. A morte de Olavo de Carvalho, que já havia criticado a superficialidade do bolsonarismo, deixou um vácuo intelectual ainda maior.
Sérgio Buarque de Holanda, embora mais associado à esquerda, oferece uma reflexão que se aplica à direita brasileira: “A ausência de uma base institucional sólida transforma movimentos ideológicos em fenômenos transitórios, presos à improvisação e à dependência de figuras carismáticas.”
2. Militância Passiva e Eleitoralismo
A militância bolsonarista é notoriamente passiva, limitando-se a ecoar palavras de ordem e apoiar candidatos com base em viralizações, muitas vezes desprovidas de preparo ou histórico político. A lógica de “qualquer um que fale mal da esquerda e bem de Bolsonaro” se tornar um possível representante conservador é sintomática dessa superficialidade. Ex-jogadores de futebol, cantores e influencers digitais são elevados ao status de liderança sem que haja qualquer esforço em formar lideranças capacitadas.
Segundo Roberto Campos, uma figura histórica do pensamento liberal brasileiro, “o brasileiro tem vocação para a esperança, mas não para a organização; essa falha é especialmente evidente naqueles que se dizem defensores da liberdade.”
3. Ausência de Estratégia de Ocupação Institucional
Enquanto a esquerda brasileira consolidou sua influência em universidades, conselhos de classe, sindicatos e na mídia, o bolsonarismo falhou em entender a importância dessas estruturas. Não há estratégia para ocupar instituições que detêm o verdadeiro poder, como o judiciário, as artes ou a academia. A direita, como um todo, permanece presa a um pensamento de curto prazo, focado em eleições e não em uma transformação cultural profunda.
Para o jurista Miguel Reale, “a política sem estratégia institucional é como um corpo sem alma; falta-lhe o elemento que lhe dá coesão e durabilidade.”
4. Culto à Personalidade e Bajulação
O bolsonarismo orbita exclusivamente em torno de seu líder. A figura de Jair Bolsonaro é idolatrada, e qualquer crítica a ele é tratada como traição. Essa dependência cria uma paralisia estratégica, onde o movimento se torna incapaz de se renovar ou se estruturar além da figura do líder. Olavo de Carvalho já apontava o perigo desse tipo de personalismo: “Não há movimento político sem líderes, mas um líder sem estrutura organizada é apenas um ídolo passageiro.”
O DIAGNÓSTICO: UM NICHO DE MERCADO
A chamada “direita” bolsonarista não é, em essência, uma direita organizada. Trata-se de um fenômeno que se assemelha a um nicho de mercado, voltado para a exploração de oportunidades eleitorais e econômicas. Não há um esforço genuíno para consolidar uma força política duradoura, e isso é evidente na incapacidade do movimento de produzir projetos estratégicos ou lideranças capacitadas.
O FUTURO DA DIREITA NO BRASIL
A consolidação de uma direita verdadeira no Brasil parece um horizonte distante. Para que isso ocorra, seria necessário:
• Formação de Intelectuais e Doutrina: Desenvolver um corpo teórico robusto, que oriente ações políticas e culturais.
• Estratégia de Ocupação de Espaços: Investir em longo prazo na ocupação de instituições-chave, como universidades, mídia e conselhos profissionais.
• Renovação de Lideranças: Romper com o personalismo e investir na formação de líderes preparados e comprometidos com um projeto de país.
Por ora, o que se observa é uma direita fragmentada, superficial e sem estratégia, presa a um ciclo de “ejaculação precoce” política que impede qualquer avanço real. Como bem diagnosticou Olavo de Carvalho, “a ausência de uma direita verdadeira no Brasil é a maior vitória da esquerda.”
Considerações Finais
Não escrevo este artigo como um inimigo da direita, mas como alguém que busca oferecer um diagnóstico honesto e sem paixões. Meu objetivo é alertar para as consequências da inércia e da superficialidade. Se nada for feito, a direita continuará sendo apenas uma reação, e não uma proposta. Sugiro, assim, maior investimento na formação intelectual, na organização de bases e no planejamento estratégico de longo prazo, para que, finalmente, surja no Brasil uma direita à altura dos desafios que enfrenta.
Rodrigo Schirmer Magalhães
Cientista Político