Porto Alegre e diversas regiões do Rio Grande do Sul enfrentaram, na noite de 17 para 18 de junho de 2025, chuvas intensas que agravaram a crise em um estado já castigado pelas enchentes de 2024. Com acumulados de 75 mm a 150 mm em 24 horas em áreas como a Região Metropolitana, o Centro e o Oeste da Lagoa dos Patos, as precipitações causaram alagamentos, bloqueios de estradas, deslizamentos e desabrigados. Enquanto a população luta para se recuperar, os recursos liberados pelo governo federal, embora significativos, estão muito abaixo do prometido e do necessário para enfrentar a escala da tragédia, deixando o estado em uma situação de vulnerabilidade.
Esta matéria visa detalhar os impactos das chuvas recentes, os municípios atingidos, as previsões para os próximos dias, e fazer uma análise crítica dos valores liberados pelo governo, confrontando promessas com a realidade.
Municípios Atingidos e Estragos Causados
A Defesa Civil do Rio Grande do Sul reportou que pelo menos 23 municípios sofreram danos entre 16 e 17 de junho de 2025, incluindo Porto Alegre, Alegrete, Canoas, São Leopoldo, Novo Hamburgo, São Sebastião do Caí, Montenegro, Lajeado, Estrela, Cruzeiro do Sul, Arroio do Meio, Gravataí, Fontoura Xavier, Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Frederico Westphalen, Santo Ângelo, Três Palmeiras, Passo Fundo, Eldorado do Sul, Guaíba, Encantado, e Segredo. Os principais prejuízos incluem:
Alagamentos generalizados: Em Porto Alegre, bairros como Menino Deus e Navegantes foram inundados, com ruas bloqueadas e casas invadidas pela água. A MetSul Meteorologia confirmou chuvas intensas com raios na madrugada de 18 de junho, agravando a situação na capital.
Isolamento de cidades: Segredo ficou isolada após chuvas que acumularam o equivalente a um mês em 24 horas, com estradas bloqueadas em 61 pontos do estado, segundo a Defesa Civil.
Desabrigados e desalojados: Dezenas de famílias foram realocadas para abrigos temporários, como ginásios e escolas, especialmente em Alegrete, onde 144,2 mm de chuva causaram inundações severas.
Falta de energia e serviços: Mais de 421 mil residências ficaram sem eletricidade, e 115 municípios enfrentaram interrupções em telefonia e internet, dificultando a comunicação e o socorro.
Os municípios mais atingidos incluem Porto Alegre, com o Guaíba em níveis alarmantes, Alegrete, com prejuízos em áreas urbanas e rurais, e o Vale do Taquari (Lajeado, Estrela, Arroio do Meio), onde a repetição de inundações reacende o trauma das enchentes de 2024. Segredo exemplifica a vulnerabilidade de cidades menores, isoladas por falta de infraestrutura.
Previsões para os Próximos Dias
A MetSul Meteorologia prevê chuvas intensas até o final da semana, com acumulados de 150 mm a 300 mm em várias regiões. Para 18 de junho, volumes de 75 mm a 150 mm são esperados nas regiões Central, Oeste da Lagoa dos Patos e Metropolitana, com alto risco de alagamentos e deslizamentos. A Defesa Civil emitiu alertas para os Vales, Serra e Litoral Norte, com possibilidade de inundações até as 20h45. A partir de 19 de junho, uma trégua temporária é esperada, mas tempestades podem retornar no fim de semana, especialmente em Porto Alegre e no noroeste. Temperaturas mínimas de até 2ºC agravarão as condições para desabrigados, exigindo ações urgentes de abrigo e assistência.
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Impactos e Contexto
As enchentes de 2024, as piores da história do estado, afetaram 478 dos 497 municípios, com 184 mortes, 25 desaparecidos e 2,4 milhões de pessoas impactadas. As perdas econômicas atingiram R$ 88,9 bilhões, com 90% das empresas afetadas, 2.400 casas destruídas e prejuízos agrícolas de R$ 2,7 bilhões. A fertilidade de 2,7 milhões de hectares de solo foi comprometida, com custo estimado de R$ 16 bilhões para recuperação, segundo a Emater. Surtos de doenças, como leptospirose (2.327 casos reportados até maio de 2024, com 141 confirmados e sete mortes), aumentaram os desafios. As chuvas de 2025, embora menos extensas, agravam a situação em um estado com infraestrutura danificada e população traumatizada.
Análise dos Recursos Federais: Promessas x Realidade
O governo federal anunciou, em maio de 2024, um pacote de R$ 50,9 bilhões para a recuperação do Rio Grande do Sul, conforme divulgado pelo Planalto. Esse montante incluía medidas como:
R$ 186,6 milhões em transferências para ações de Defesa Civil em 235 planos de trabalho aprovados até 15 de maio de 2024. Outros 94 planos, com potencial de R$ 131,4 milhões, estavam em análise.
R$ 1,33 bilhão em emenda para municípios em estado de calamidade, com R$ 647,7 milhões autorizados e R$ 620,1 milhões pagos (97,3%).
R$ 464 milhões em transferências especiais para 465 municípios, com 97% de aceitação.
R$ 4,5 bilhões em crédito para micro e pequenas empresas.
R$ 1 bilhão em subsídios para produtores rurais via Pronamp e Pronaf.
R$ 4,8 bilhões para prorrogação de prazos fiscais para 203 mil empresas.
Além disso, o governo suspendeu o pagamento da dívida do estado por três anos, liberando recursos para recuperação, e a Receita Federal facilitou doações internacionais via o programa “Fast Track Revenue”. O BID anunciou R$ 5,5 bilhões em empréstimos, com R$ 1,5 bilhão para infraestrutura e R$ 4 bilhões para adaptação climática. Em abril de 2025, o Banco Mundial aprovou um empréstimo de US$ 359,6 milhões (cerca de R$ 2 bilhões) para resiliência climática e monitoramento de desastres.
Apesar desses números, a realidade é preocupante. O pacote de R$ 50,9 bilhões, amplamente divulgado, não se traduziu em ações proporcionais à escala da crise. Segundo o World Socialist Web Site, o governo federal priorizou o déficit fiscal zero, reduzindo o orçamento para prevenção de desastres de R$ 1,9 bilhão em 2024 para R$ 1,7 bilhão em 2025, e emendas parlamentares para programas climáticos caíram de R$ 69,9 milhões para R$ 39,1 milhões. Entre 2013 e 2023, o governo gastou R$ 13,3 bilhões em gestão de crises, mas apenas R$ 4,9 bilhões em prevenção, evidenciando uma abordagem reativa que perpetua a vulnerabilidade.
Em comparação com as perdas de R$ 88,9 bilhões em 2024, os R$ 50,9 bilhões anunciados são insuficientes, especialmente considerando que grande parte foi destinada a crédito e prorrogações fiscais, não a obras concretas. Por exemplo, a reconstrução de apenas 2,7 milhões de hectares de solo agrícola exige R$ 16 bilhões, quase um terço do pacote total. A SciELO Brazil destaca que a falta de investimento em prevenção, como sistemas de contenção e mapas de risco atualizados, aumenta o impacto de desastres recorrentes. Em Porto Alegre, o sistema de contenção, com apenas duas das 14 comportas danificadas substituídas, permanece vulnerável, conforme alertou o hidrólogo Fernando Dornelles, da UFRGS.
Moradores, como Norma Isabel Franke, agricultora de 53 anos, relatam que os recursos não chegaram a muitas famílias, forçando-as a usar economias pessoais para reconstrução. A BrazilFoundation aponta que apenas iniciativas locais, como a doação de “kits de limpeza” e “kits domésticos”, têm atendido necessidades imediatas, enquanto a recuperação de longo prazo segue lenta.
Análise Técnica: O Que Deve Ser Feito e o Que Está Sendo Negligenciado
A recorrência de eventos climáticos extremos exige ações estruturais:
O que deve ser feito:
Investimento em prevenção: Atualizar mapas de risco, proibir construções em áreas inundáveis e construir bacias de retenção e sistemas de drenagem urbana.
Recuperação agrícola: Financiar a restauração de solos com culturas de cobertura, como leguminosas e milheto, para recuperar a fertilidade, conforme sugerido pelo pesquisador Ricardo Bergamo Schenato.
Fortalecimento de infraestrutura: Reconstruir pontes, barragens e comportas com materiais resilientes, priorizando a recuperação do sistema de contenção de Porto Alegre.
Vigilância sanitária: Ampliar o sistema EWARS para monitoramento de doenças como leptospirose em todo o estado, não apenas em aldeias indígenas.
Apoio psicossocial: Criar redes de apoio psicológico para enfrentar traumas, especialmente em crianças e idosos.
O que está sendo negligenciado:
Subfinanciamento de prevenção: A redução do orçamento para desastres climáticos em 2025 contraria as projeções de eventos cinco vezes mais frequentes, segundo a ANA.
Lentidão na reconstrução: A falta de substituição das comportas e a incompleta recuperação das estações de bombeamento em Porto Alegre aumentam o risco de novas inundações.
Foco em medidas paliativas: A ênfase em crédito e isenções fiscais, em vez de obras de infraestrutura, não resolve os gargalos estruturais.
Falta de transparência: A ausência de relatórios detalhados sobre a aplicação dos R$ 50,9 bilhões dificulta a fiscalização pela sociedade.
Despreparo para saúde pública: A limitada resposta a surtos de doenças, como a leptospirose, reflete a falta de planejamento para crises sanitárias pós-enchentes.
Resposta do Poder Público e da Sociedade
A Defesa Civil mobilizou mais de 1.100 soldados, bombeiros e voluntários, mas a resposta é limitada pela escala dos danos. A prefeitura de Porto Alegre, com apoio do BID, mapeia danos, enquanto a BrazilFoundation e a UNHCR distribuem kits e assistência a comunidades vulneráveis. No entanto, a sociedade cobra ações mais robustas. Em postagens no X, moradores descrevem a sensação de “viver à espera da próxima chuva”, exigindo investimentos em prevenção. O governador Eduardo Leite anunciou uma nova ponte no Vale do Taquari, mas os R$ 14 milhões previstos são insuficientes frente às necessidades.
ALERTA DEFESA CIVIL/RS
Conclusão
As chuvas de junho de 2025 expõem a fragilidade do Rio Grande do Sul diante de desastres climáticos recorrentes. Os R$ 50,9 bilhões anunciados pelo governo federal, embora expressivos, são insuficientes frente aos R$ 88,9 bilhões em perdas de 2024 e aos custos de recuperação agrícola e estrutural. A prioridade ao déficit fiscal e a redução de verbas para prevenção refletem uma visão míope que deixa a população vulnerável. O povo gaúcho, resiliente, exige do poder público transparência, planejamento e obras que priorizem a segurança e o futuro do estado. Sem uma mudança urgente, o Rio Grande do Sul permanecerá refém de tragédias anunciadas.